“Defendo a liberdade porque sou pela liberdade e por isso não devo defender a liberdade, porque para defender a liberdade teria de atacar a liberdade, o que me obrigaria então a defendê-la por ser a favor dela - merda! Sou pela liberdade, sou contra a opressão, e isto é simples, é humano, é evidente - disse! E não me chateiem mais.”- Vergílio Ferreira”
“Somos livres para fazer quando temos o poder de fazer” (Voltaire)
A ideia de liberdade, predominante no liberalismo é de que através do livre mercado as potencialidades humanas seriam, automaticamente, estimuladas em benefício de uma colectividade. Nessa óptica o grande inimigo da “liberdade” é o Estado, por pretenderem regrar os indivíduos de acordo com um interesse colectivo.
A origem dessa concepção de liberdade remonta ao período de ascensão da burguesia com o advento do capitalismo e o fim do poder absolutista feudal. Para a burguesia, progressista e revolucionária da época, o feudalismo, amparado na absolutização da ideia de que a liberdade é uma dádiva divina, seria substituído pelo predomínio da propriedade privada dos meios de produção e do mercado. É essa a liberdade do indivíduo, centralmente reivindicada pelos liberais. Esse conceito de liberdade, foi documentado por ocasião da Revolução Francesa, em 1791, como sendo o livre arbítrio do indivíduo o “agir livremente sem interferir na liberdade do outro”.
Essa proclamação da liberdade do indivíduo, repetida mundialmente pelo senso comum, privatiza o próprio conceito de liberdade como sendo, simplesmente, derivada da consciência individual do ser humano e prevê um único limite, o qual realmente lhe interessa: a propriedade privada dos meios de produção como um direito humano, que integra a Declaração Universal dos Direitos Humanos até hoje, em seu artigo 17. A afirmação da importância da propriedade é tão enfática que chega a ser vista como a própria origem da liberdade. Respeitando a divisa da propriedade do outro, a livre concorrência se encarregaria de regrar as relações entre os seres humanos. Ao Estado, caberia a função de zelar pelo cumprimento dos dogmas centrais do liberalismo, concentrando-se em actividades como “educar” os cidadãos para o exercício dos seus “direitos e deveres” e a repressão dos que viessem a subverter a nova ordem estabelecida. Nesse contexto, os liberais revolucionários de outrora tornam-se os novos conservadores e, em vez de abolirem o Estado, passam a usá-lo como aparelho ideológico e repressivo a serviço dos seus interesses de classe dominante.
Mas, é possível ao indivíduo social agir sem interferir na liberdade de outro?
A liberdade, antes de se constituir em valor, é uma relação do ser humano com a natureza e a sociedade. É, ao mesmo tempo, um desejo de autodeterminação do ser humano, mas sempre situado e relativo a uma totalidade a que ele pertence. A liberdade do indivíduo, ao contrário do que afirmam os liberais, está sempre relacionada com a liberdade dos outros e da colectividade. A possibilidade de cada um poder optar, decidir e agir, adquire uma importância central para o uso da liberdade.
É precisamente em função do reconhecimento da existência de uma relação limitada do indivíduo humano com a totalidade que surgem as diferentes concepções acerca da liberdade.
Para o absolutismo da Idade Média, Deus, como o criador de tudo, ocupava o lugar desta totalidade e a liberdade humana consistiria em agir conscientemente de acordo com a vontade divina.
O aspecto revolucionário dos liberais foi a negação da totalidade divina e a afirmação de um novo dogma em seu lugar: a liberdade “natural”, decorrente da propriedade na sociedade. O que é social, portanto, passa a ser “naturalizado”. As convenções sociais, estabelecidas pela nova classe dominante em ascensão, passam a constituir um novo dogma e a nova totalidade, deixa de ser divina para ser de livre mercado.
Mas, o que haveria de natural nesta “liberdade”?
O ser humano é parte da natureza e, na sua relação com o que é natural, vão-se estabelecendo modos de produção e relações sociais.
O homem, distingue-se dos animais porque, graças ao seu trabalho, conseguiu dominar em parte, as forças da natureza, colocando-as a seu serviço.
"Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana." (Marx).
Através do trabalho foram criadas as condições de sociabilidade humana: os seres humanos interagem com o mundo natural e entre si e, nesse processo, evoluem. Diferentes dos animais, portanto, os seres humanos não estão determinados e acabados. É na relação com o meio e seus limites que o ser humano transforma e se transforma a si mesmo, produzindo, ao longo da história, a cultura humana.
O trabalho é, ao mesmo tempo, factor de sobrevivência, de humanização, de integração social, de auto-estima e de utilidade social.
A cultura humana, portanto, não tem nada de natural e é um processo criativo e inacabado. O ser humano, consciente dessa evolução, é potencialmente livre, pois o seu ser está eivado da possibilidade qualitativa do “vir-a-ser”. Ao criar condições que lhe permitem uma maior humanização o ser humano passa a experienciar uma liberdade real e não meramente interior, de carácter subjectivo. A liberdade do indivíduo, portanto, não consiste em estar independente da sociedade e do seu desenvolvimento. Pelo contrário, ela somente se efectiva na possibilidade real de desenvolver e satisfazer necessidades e capacidades humanas em sociedade.
Não basta, portanto, a liberdade subjectiva de fazer algo se o poder e as condições objectivas da realidade impedem a acção. Isso os liberais revolucionários haviam compreendido na sua época e deram um passo significativo ao se contraporem ao poder absolutista da Igreja, propondo a liberdade, a igualdade e a fraternidade como valores centrais para o convívio humano em sociedade.
Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e do livre mercado, porém, as crescentes desigualdades, impedem as “igualdades de oportunidades” e o exercício da liberdade do indivíduo. Formalmente, todos são reconhecidos como livres e iguais mas, na realidade, os trabalhadores estão numa condição de desigualdade e subordinação em relação aos proprietários dos meios de produção. Dependem de um salário que lhes permita viver.
Por isso, o conceito de liberdade no capitalismo, expressa um carácter ideológico de classe. Para os proprietários dos meios de produção a liberdade consiste essencialmente na liberdade de ditar as regras que lhes permitam as melhores possibilidades de explorar e dominar a classe trabalhadora, para melhor satisfazer seus interesses.
A defesa da mera liberdade de “livre concorrência” neste contexto significa defender a liberdade de explorar outros e acabar com tudo o que possa restringir essa capacidade do enriquecimento privado. É uma mera ideologia – no sentido de falsificação social e política. Para os trabalhadores que não dispõem da propriedade dos meios de produção, essa liberdade é irrealizável pois estão eternamente dependentes da classe que dispões dos meios de produção. Não há liberdade quando há dependência.
A liberdade real, portanto, entra em confronto com as concepções, abstractas ou ideológicas do liberalismo e centra-se na luta desenfreada dos seres humanos, entre si, pela satisfação de necessidades materiais.
Uma liberdade humana efectiva, ou melhor, as liberdades, só são possíveis através da superação das relações sociais geradoras de exploração, dominação e alienação, inerentes aos dogmas da propriedade privada e do mercado. A "liberdade" constitui um valor revolucionário e a sua defesa consciente implica no desmascaramento da instrumentalização por parte da classe dominante na sociedade capitalista.
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