17 de dezembro de 2011

Islândia e Argentina (2)

Resposta a um comentário anónimo ao texto anterior

Sr. Anónimo
Agradeço ter feito o comentário pois é sempre uma oportunidade para o debate. Faço-o aqui dada a dimensão da resposta que não permite de outro modo e, desta forma, creio ser também útil para outros leitores. 

Não vou pôr em causa o que disse, ainda que tenha abordado o problema desses países de uma forma demasiado restrita e fugindo ao cerne da questão. 
O texto que escrevi não tinha, nem tem, a intenção de analisar os problemas económicos dos países referidos, que sei bem que são diferentes dos de Portugal.
Por isso, como há-de reparar se ler o meu texto com isenção, eu apenas referi a forma como eles se libertaram da chantagem que os mercados, o FMI (Argentina) e a União Europeia (Islândia) lhes fizeram. Também por isso, não aceito a sua crítica de "Ora ai está um texto escrito de má fé! Possivelmente por alguém que é amigo de algum politico e por isso tenta confundir o problema da Islândia com o Português e atirar a culpa para os banqueiros".

Ainda que não fosse esse o tema do texto, admito que, conscientemente, "atirei a culpa para os banqueiros" (caso da Islândia) e não só os banqueiros, como é o caso da Argentina. 
O cerne da questão está na forma como o povo desses países reagiram defendendo os interesses do seu país e, "de certo modo", se estiveram "marimbando" (para utilizar o termo tão badalado) para as chantagens e ameaças do FMI, da União Europeia (Islândia) e também dos Bancos Ingleses e Holandeses.

Independentemente da grande fatia de culpa dos Bancos e banqueiros, no caso da Islândia, também o Governo da Islândia quis pagar as dívidas exigidas pela União Europeia, impondo um Plano de Austeridade aos islandeses. Como sabe o Presidente da República, apesar das ameaças, exigiu que fosse feito um referendo. O povo recusou pagar as dívidas da responsabilidade dos Bancos Privados e exigiu a renegociação da dívida. A União Europeia (UE) acabou por ceder e baixou os juros significativamente.

Essa é a moral da história.
  
Na Argentina de 1999 Fernando de la Rúa anunciou a necessidade de uma série de aumentos de impostos e ajuste da estrutura estatal com privatizações de considerável magnitude. 
A situação económica e social era muito delicada: desemprego que superava os 15% e que subia implacavelmente, desconfiança de 

parte do mercado financeiro internacional e uma gigantesca dívida externa eram alguns dos principais temas urgentes na agenda do governo.

O Ministério da Economia traçou um "Plano de Austeridade" com a finalidade de barrar o défice, e contraindo novos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Os aumento dos impostos e os cortes orçamentários, exigidos pelo FMI, não reduziram, significativamente o défice, e a  insistência na sobrevalorização do peso, atrelado ao dólar pela Lei da Conversibilidade, agravaram os problemas sociais. Em dezembro de 2001, o FMI negou à Argentina  novo financiamento, da ordem de US$ 1.264 milhões. 

As pressões em prol do pagamento dessa dívida odiosa forçaram à reorganização neoliberal da economia, imposta pelo FMI, (privatizações, abertura comercial ao exterior e flexibilização do trabalho).
  
Tal como na UE, a Argentina perdeu a sua soberania económica com um sistema de convertibilidade do dólar que a impedia de gerir a moeda e o crédito, tal como agora os países do Euro. Todos os bens rentáveis do Estado foram privatizados (petróleo, portos, comboios, telefones) e a industria nacional sofreu uma redução drástica em consequência de uma vaga de importações que eliminou as pequenas empresas. Tal como sucede em Portugal.
O desemprego cresceu, a pobreza aumentou. A classe média ficou reduzida e a desigualdade social alcançou níveis sem precedentes. Pela primeira vez na história do país irrompeu a fome. O FMI designou os ministros e controlou os deputados. Os partidos tradicionais submeteram-se ao neo-liberalismo. Tudo isto tal como em Portugal.

A partir de 19 de dezembro de 2001 iniciam-se as manifestações populares que só terminaram com a renúncia do presidente De la Rúa.  
  
Dados da imprensa argentina dão conta de que a dívida externa pública chegou a 170 mil milhões de dólares e a dívida privada a 40 mil milhões, fruto da política de saque imposta pelo imperialismo americano através dos mecanismos de pagamento dos serviços da dívida externa, a juros agiotas, e que prossegue com a corrupção desenfreada em todas as esferas do poder público e privado. 40% da indústria e a maioria dos serviços públicos e 90% dos bancos estão em mãos privadas estrangeiras. A aplicação da política imposta pelo imperialismo aumentou o poder do latifúndio e das agroindústrias que controlam as melhores terras do país. Mais de 20 milhões de hectares de terras estão hipotecadas pelos bancos. A Argentina vive um processo acelerado de "estrangeirização" das terras: o imperialismo pressiona a criação do Banco Federal, que agruparia os Bancos Nación, Província, Córdoba e Cidade para posterior privatização, ficando dessa forma com as terras hipotecadas.
  
Considerado “esgotado” o liberalismo que levou a Argentina à bancarrota, ao caos, tornou-se inevitável a "pesificação", ou seja, o fim do "currency board", que vinculara artificialmente o peso ao dólar.
  
Como Paul Krugman escreveu,  o “catastrófico fracasso” resultou das políticas económicas aplicadas na Argentina com o selo -  “made in Washington”.  E Jeffrey Sachs advertiu que o país que “segue a receita do FMI cegamente corre o risco de acabar num abismo”. 
  
As semelhanças com a actual situação da Grécia e Portugal saltam à vista. Nestes países a dívida é o produto da evasão fiscal e de manipulações contabilísticas para financiar a introdução de um modelo neoliberal. Este esquema desemboca numa impossibilidade do pagamento da dívida, seja explícito ou dissimulada.
  
usuráriasdiretos e a privatização das pensões. Com o corte nas despesas sociais recriou-se um círculo vicioso de baixa das receitas fiscais e do aumento da recessão. Processo idêntico ao aplicado a Portugal, Grécia etc.
  
Os mesmos funcionários do FMI, que agora escrevem o memorando da Grécia e Portugal, manobravam o ministério da economia da Argentina. Os benefícios financeiros, que actualmente se obtêm especulando com a dívida grega e portuguesa, conseguiram-se como a compra e venda da dívida argentina. 
  
A imprensa mundial maltratava a população argentina com os mesmos qualificativos que hoje recebe o povo grego. Para dissimular o parasitismo dos financeiros, os jornais identificavam os argentinos com a irresponsabilidade, a corrupção e diziam que não queriam trabalhar. Em vez de repudiar estas calúnias, os governos vizinhos procuravam diferenciar-se de um país crucificado pelo FMI. É a mesma atitude que adoptam hoje os governos da Europa em especial para com a Grécia. 
  
O FMI exercia uma chantagem sobre a Argentina com um dilema muito semelhante ao imposto à Grécia em torno do euro.
Exigia-se que a Argentina optasse entre duas catástrofes: o ajustamento deflacionista para continuar com a convertibilidade peso-dólar ou o ajustamento inflacionário com a desvalorização da moeda para sair desse modelo. 
Nunca se falava da terceira opção: a suspensão do pagamento da dívida e o aumento dos impostos aos grandes capitalistas.
  
A ruptura com esta política, na Argentina em 2001, foi seguida por cinco anos de crescimento. Na Grécia e em Portugal de hoje, a inflação e a recessão aumentam. 
 
O mais importante para mudar a política neoliberal na Argentina foi a reacção popular. Essa acção transformou completamente o curso dos acontecimentos. Durante semanas os piquetes cortaram as estradas e as greves paralisaram as cidades. Uma grande aliança social constituiu-se nas ruas entre desempregados e a classe média, que sob uma palavra de ordem comum ("que se vayan todos!"), impôs a queda do governo e a mudança de política. A partir desse momento não se podia ignorar a voz do povo. 

Do ocorrido na Argentina podem extrair-se algumas lições, aplicáveis a Portugal e aos países da Europa com mais dificuldades: 
  
As lutas generalizadas e contínuas permitiram atenuar o efeito negativo da austeridade. Graças a estas mobilizações reverteu-se, na última década, uma grande parte da deterioração salarial. O governo fez importantes concessões: melhorou a situação do emprego, reduziu a pobreza e ampliaram-se significativamente os direitos democráticos.

Apesar de, com a falta de pagamento da dívida, os representantes dos meios financeiros ameaçarem com o trágico isolamento do país, tal não aconteceu. Pelo contrário, a ruptura das relações financeiras internacionais permitiu um grande alívio económico. A ausência de pagamentos externos contribuiu especialmente para impulsionar a reactivação interna. Facilitou a negociação com os credores, confirmando que quando uma dívida é elevada o problema é dos banqueiros. A soberania da Argentina foi reconquistada e o rompimento com os vínculos externos e internacionais e permitiu vencer a crise do capitalismo desencadeado pelos EUA em 2007 e 2008 e o crescimento da economia argentina. Ficaram livres da especulação contra os títulos ou a moeda, pois o país tinha rompido as suas ligações com a estrutura financeira global.
  
Ficou demonstrado que não há nenhuma necessidade de obedecer ao FMI e que se pode rechaçar a política ortodoxa do "ajustamento" da "austeridade" com soluções mais radicais, que melhoraram os resultados em matéria de emprego e salário, mais favoráveis para o povo e para a economia em geral.
  
Estas conclusões podem estender-se a todos os países da periferia europeia, que sofrem da mesma situação que a América Latina sofreu nos anos 80 e 90. Ambas as regiões periféricas foram vítimas das crises capitalistas. A dívida cresceu nesses países de forma muito semelhante. Excedente de liquidez nos centros da alta finança e sua colocação nas economias dependentes para assegurar os mercados de exportação dos grandes grupos económicos. 
A América Latina foi assaltada pelos capitais sobrantes e fictícios dos bancos norte-americanos. 
Também a Europa do Sul foi integrada na União Europeia para se converter em cliente cativo das companhias alemãs ou francesas.
Na crise estão a ser aplicados modelos de "ajustamento" semelhantes aos usados na América Latina. Os Estados tomam a seu cargo a insolvência dos grandes devedores privados e os trabalhadores e populações suportam as consequências para salvar os Bancos e os credores. 

Obrigam-se os pequenos países como a Islândia, a medidas inaceitáveis para pagar aos bancos estrangeiros como aconteceu na América do Sul. A terapêutica aplicada pelo FMI à Venezuela ou Peru, é agora imposta às economias mais débeis de Portugal, Grécia ou Irlanda.  Na Europa também os governos procuram, como na América Latina, destruir as conquistas sociais. 
  
Na América do Sul, a política neoliberal foi travada na Bolívia, Equador e Venezuela. As experiências latino-americanas são um laboratório para o movimento social europeu. Tem sido muito discutido a suspensão do pagamentos da dívida de vários países. Nalguns conseguiram-se moratórias. 
No Equador funcionou uma Comissão de Auditoria à Dívida, que esclareceu o carácter ilegítimo de grande parte dos valores. Muitas outras iniciativas devem ser analisadas pelos países em dificuldade como Portugal. 
  
O problema da dívida tem actualmente uma dimensão mundial e afecta significativamente as economias desenvolvidas, pois o resgate dos bancos colocou a dívida pública norte-americana em níveis altíssimos. Nos países mais ricos o resgate dos bancos é escandaloso, pois foram eles que provocaram a contaminação internacional de ativos e passivos tóxicos. 
 
Fui mais longe do que previa para lhe demonstrar a relação dos problemas do capitalismo e da crise de hoje, com o já verificado noutros países. As soluções encontradas pela Islândia e Argentina, entre outras, devem ser analisadas como era o objectivo do texto que escrevi. Acabei por falar mais na Argentina mas relativamente à Islândia escrevi, há meses, textos mais desenvolvidos em 
http://c-de.blogspot.com/2011/03/o-exemplo-da-islandia.html  e  também em http://c-de.blogspot.com/2011/03/o-exemplo-da-islandia-2.html e ainda em  http://c-de.blogspot.com/2011/04/o-exemplo-da-islandia-3.html  e http://c-de.blogspot.com/2011/11/referendo-atrevido.html 
  
Não sou especialista em economia nem tenho pretensões a dissertar sobre tais matérias muito técnicas. O que escrevi foi apoiado em textos que consultei, escritos por autores de referência e publicados em órgãos especializados. O objectivo dos meus textos é tratar assuntos importantes para as pessoas em geral, de uma forma acessível para todos e analisada em função das opções políticas. São questões políticas e como tal devem ser vistas por qualquer cidadão.
 
Espero ter esclarecido o meu ponto de vista e ter provado não haver nisso a tal má fé de que me acusou.

Com os meus cumprimentos
Eduardo Baptista

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