«Falavam de demónios vermelhos vindos de longe para fazerem a guerra. E os homens respondiam: "Nós trazemos o corpo inteiro e os livros da paz". E o medo das bruxas encorpava. Mulheres havia que esconderam as crianças. Era o medo do demónio, do fogo, da guerra, das sombras más que uivavam como lobos, diziam-lhes. O pão, escasso e duro, era fechado nas arcas».
Ontem, em casa do José João, Licínia contou-nos uma história, real e que permanece viva e forte em muitos de nós. Falou-nos das misérias e dos medos incendiados nos corações de gente simples após o 25 de Abril de 1974. Falou-nos do medo da liberdade, implantado durante gerações no corpo dos humildes. Contou-nos histórias de bruxas vindas de outras terras roubar o pão que as gentes não tinham. Do demónio vermelho vestido com farda de soldado ou de mulheres sem armas que vinham fazer a guerra. De belzebus com corpo de homens que traziam livros nas mãos e palavras nas bocas.
É um texto poetisado, baseado numa vivência própria no chamado Verão Quente, em que fiz parte duma campanha de dinamização cultural organizada pela genuína e irrepetida aliança Povo-MFA. Partíamos por esse Portugal pobre e escondido, levando a ajuda possível: livros, brinquedos, baloiços, lexívia para desinfectar as águas, etc. E, de acordo com as populações, ajudávamos em trabalhos essenciais. Foram aventuras e sonhos lindos em que nos sentimos verdadeiramente cidadãos úteis do nosso país. Foram, no entanto, aventuras de alto risco porque a reacção ao nosso trabalho e empenho foi forte, devastadora, criminosa. Foi o Verão em que deitaram fogos às matas, acusando os comunistas. Foi quando queimavam e destruiam sedes dos partidos de esquerda. Foi quando os bombistas atacaram a matar. Os caciques diziam que nós levávamos armas e íamos fazer a guerra. Era a nossa palavra, a nossa acção contra as ameaças deles. Nessa aldeia perdida de que aqui falo, nós conseguimos calar os caciques e sermos aceites e estimados pela população que connosco colaborou e conversou como nunca tinha conversado. Foi um tempo lindo, apesar dos perigos, apesar das calúnias de que fomos alvo. Está por contar o que foi de facto esse Verão de 75. Eu vou tentando.
ResponderEliminarObrigado Licínia, por fazeres lembrar aos jovens que não viveram esses momentos de grande amor ao povo.
ResponderEliminarEduardo