11 de maio de 2011

Os demónios e outros fantasmas

Coisas que ainda perduram

«Falavam de demónios vermelhos vindos de longe para fazerem a guerra. E os homens respondiam: "Nós trazemos o corpo inteiro e os livros da paz". E o medo das bruxas encorpava. Mulheres havia que esconderam as crianças. Era o medo do demónio, do fogo, da guerra, das sombras más que uivavam como lobos, diziam-lhes. O pão, escasso e duro, era fechado nas arcas».

Ontem, em casa do José João, Licínia contou-nos uma história, real e que permanece viva e forte em muitos de nós. Falou-nos das misérias e dos medos incendiados nos corações de gente simples após o 25 de Abril de 1974. Falou-nos do medo da liberdade, implantado durante gerações no corpo dos humildes. Contou-nos histórias de bruxas vindas de outras terras roubar o pão que as gentes não tinham. Do demónio vermelho vestido com farda de soldado ou de mulheres sem armas que vinham fazer a guerra. De belzebus com corpo de homens que traziam livros nas mãos e palavras nas bocas.
 
«E os homens diziam: "Nós trazemos o pão, o leite, o mel e o vinho". No luar se encontraram, afastados, resguardados dos estranhos que diziam palavras estranhas como livro e paz. Lá no cimo, ao longe, as matas estavam acesas, um fogo rasteiro, de devorar restolho e afugentar coelhos. De homens nem sinal. E as mulheres diziam: "Foi o demo que lá passou. De manhã cedo vai-se embora e veste-se como um homem e fala como um homem, com palavras novas como livro e paz".»

È uma história que Licínia transformou em poema e que pode, deve, ser lida em:

2 comentários:

  1. É um texto poetisado, baseado numa vivência própria no chamado Verão Quente, em que fiz parte duma campanha de dinamização cultural organizada pela genuína e irrepetida aliança Povo-MFA. Partíamos por esse Portugal pobre e escondido, levando a ajuda possível: livros, brinquedos, baloiços, lexívia para desinfectar as águas, etc. E, de acordo com as populações, ajudávamos em trabalhos essenciais. Foram aventuras e sonhos lindos em que nos sentimos verdadeiramente cidadãos úteis do nosso país. Foram, no entanto, aventuras de alto risco porque a reacção ao nosso trabalho e empenho foi forte, devastadora, criminosa. Foi o Verão em que deitaram fogos às matas, acusando os comunistas. Foi quando queimavam e destruiam sedes dos partidos de esquerda. Foi quando os bombistas atacaram a matar. Os caciques diziam que nós levávamos armas e íamos fazer a guerra. Era a nossa palavra, a nossa acção contra as ameaças deles. Nessa aldeia perdida de que aqui falo, nós conseguimos calar os caciques e sermos aceites e estimados pela população que connosco colaborou e conversou como nunca tinha conversado. Foi um tempo lindo, apesar dos perigos, apesar das calúnias de que fomos alvo. Está por contar o que foi de facto esse Verão de 75. Eu vou tentando.

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  2. Obrigado Licínia, por fazeres lembrar aos jovens que não viveram esses momentos de grande amor ao povo.
    Eduardo

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